2006/11/06

Trabalho na rodoviária

Na quarta feira, dia primeiro de novembro, eu passei por uma situação muito interessante. Vou escrever da forma que eu me lembrar; sinto muito por não conseguir ser mais preciso. Vou evitar ao máximo colocar minha opinião, embora seja do meu ponto de vista a estória. É que eu acho mais interessante que quem a lê decida por si mesmo. Mais uma coisa: os erros de português não são da digitação; eu tentei transcrever literalmente o que foi dito.

Eu estava na rodoviária do Plano Piloto esperando um ônibus para Sobradinho quando uma menininha apareceu vendendo jujubas. Tentei falar com ela mas ela não ouviu. Ela encontrou com um menino atrás da parada e eu fui atrás dela.
-Oi! Ei! Jujuba! Você não tá vendendo jujuba?
-Quer jujuba, moço? Quatro por um real.
-Compra de mim. – diz o garoto que estava com ela.
-Olha... – eu começo – é que... assim... Na verdade eu queria era conversar. Eu queria saber... você é muito nova para estar trabalhando, né?
-Fazer o que, tem que trabalhar.
-Mas você deveria estar estudando. Quantos anos você tem?
-Eu tenho nove.
-Eu tenho onze - responde o menino. – Mas a gente estuda.
-Eu tô na segunda série. – diz a menina.
-IHH! Eu tô na quarta, ihhh! – retruca o garoto.
-Na quarta, então você tá atrasado né?
-É que eu morava no Piauí, aí meu pai viajou pra cá, aí eu perdi dois anos.
-Então você era adiantado né?
-É, eu era.
-Desculpa eu estar toda hora olhando pra lá, é que eu tô com medo de peder meu ônibus.
-Que ônibus é que tu pega?
-O 501.
-Pra onde que é?
-Pra Sobradinho.
-Passou um já, eu vi lá.
-É, mas não era o meu. Então; - me referindo à garota – não tem como sua mãe conseguir uma bolsa-escola ou outra coisa pra você não precisar mais trabalhar? Onde é que você mora?
-Eu moro em Luziânia.
-E sua mãe te traz pra cá pra trabalhar.
-Não, eu venho com aquela mulher ali.
-Qual?
-Aquela ali, vendendo churrasquinho. A de amarelo.
-Eu vim com meu pai, -diz o menino- ele também tá ali vendendo churrasquinho.
-Onde?
-Lá, ó. Atrás daquela caixa de isopor.
-Aquele careca ali?
-Hahaha! Não, o outro.
-Pô, eu vou lá falar com eles. Por que não tem condição de vocês ficarem trabalhando, vocês não têm idade pra isso. Pela lei vocês só podem trabalhar a partir dos quatorze anos.
-Mas minha mãe precisa, ela tá desempregada. – ainda a menina.
-Poxa, mas será que não tem outro jeito? Fala com sua mãe, vê se dá pra dar um jeito. Pra isso tem a bolsa-escola. Vocês não deveriam estar trabalhando. E aquela mulher que você falou? Fala com ela. Cadê ela?
-Ela tá ali, ó.
-Meu tá lá também. – o menino.
-Vou lá falar com eles.
-Num vai comprar não? –pergunta a menina.
-Não – eu respondo. – Se eu comprar eu vou estar estimulando esse tipo de coisa, que é errado. Trabalho infantil é errado. Eu vou lá falar com eles. Tchau.
Me aproximo da mulher, que estava logo em frente à faixa de pedestres, perto da mureta, e tento chamar a atenção dela; quase tenho de gritar.
-Com licensa. Oi! Ei!
-Hã.
Eu tive de me aproximar mais, pelo lado pra ser ouvido.
-Dá licensa? Opa, deixa eu sair daqui, a fumaça tá vindo toda pra cima de mim. Oi. Tem uma criança vendendo jujuba; ela tá contigo, né.
-É.
-Eu falei com ela, ela é muito nova; será que não tinha como você falar com a mãe dela, para ela não trabalhar mais?
-Ah, a mãe dela deixa.
-Mas será que não tinha como ela arrumar uma bolsa escola, sei lá...
-Ela gosta de trabalhar.
-Pôxa, mas ela é criança, não tem isso de gostar. Se você disser pra ela gostar de trabalhar ela vai gostar, né? – falei sorrindo; não queria que tivesse um tom de sermão. – Ela poderia conseguir uma bolsa escola, sei lá, pra parar de trabalhar, né? Será que você não poderia falar com a mãe dela pra ela tentar? Desculpa eu estar olhando pra lá, é que eu tô com medo de perder meu ônibus.
-Ela tem bolsa escola. Só que a mãe dela tá desempregada e tem oito filhos pra criar sozinha.
-É uma situação complicada... mas tem jeito de resolver, ela não precisa estar trabalhando.
-Agora, - ela começa a demostrar irritação- eu acho engraçado. Tem um monte de menino ali em baixo (apontando para os meninos de rua na parte de baixo, no gramado de frente à Esplanada) e ninguém faz nada. Agora a menina está trabalhando aqui e vem o outro encher o saco.
-Olha, é uma situação complicada, eu sei que não é fácil, por isso que eu só tô falando pra você conversar com ela, pra menina num trabalhar mais. Pôxa vida; a menina tem nove anos, o outro lá tem onze; são duas crianças. Eles tão perdendo parte da infância deles, queimando etapas da infância, numa idade em que eles deverias estar brincando, sabe, isso atrapalha até no desenvolvimento cognitivo deles. Uma hora chega a polícia aí, sei lá, e leva pro juizado, prum abrigo, aí a mãe fica sem a filha e fica a criança sem uma família; e se ficar na rua fica sem estudo. Todo mundo sai perdendo com essa situação. E, convenhamos, trabalho infantil é crime, né?
-Agora; é melhor ela tá aí trabalhando do que robando, cherando cola. Aqueles meninos estão aí, por que que ninguém faz nada? A menina pelo menos tá trabalhando.
-Mas não tá certo, as duas situações estão erradas. Só porque...
-Que que é mais bonito: a menina tá trabalhando ou tá roubando, tá cherando cola?
Perdi a calma costumeira e elevei também meu tom de voz. Passou a ser realmente uma discussão, no mal sentido.
-Os dois são feios. Só porque o outro é mais feio não quer dizer que a menina estar trabalhando é bonito. Um erro não justifica o outro!
-É, e vai fazer o que? Paga o aluguel dela então! Ela tem oito filhos pra criar, a menina tá ajudando ela!
-Ela pode morar em outro lugar. Lá em Sobradinho, que é onde eu moro, tem um lugar assim. O pessoal que mora lá tudo tem família, só que a família não dá conta de sustentar então a criança fica morando lá, estuda, brinca, não precisa estar trabalhando.
-E o que que você tem que pôr o dedo na ferida dos outros? Vai pôr o dedo naquela ferida lá. – apontando pra os meninos de rua. -É melhor tá trabalhando que robando!
-É, mas tá trabalhando aí na rua; daqui pra ali é um pulo.
Aí o cara que estava à esquerda dela no meu ponto de vista, atrás de uma caixa de isopor, se manifesta, todo irritado.
-Ela num tá largada na rua não, ela tá com a gente!
-É, mas você acha razoável uma menina de nove anos trabalhando?
-E o que que tu tem que tá se metendo?!
-Eu tou falando por que eu me importo. É uma criança...
-Olha tu vai-te pra...
-Você acha razoável colocar uma criança desse tamanho pra trabalhar?
-Olha, é melhor tu sair daqui, é melhor pra você... – com o dedo indicador levantado como quem dá um aviso, e as sombrancelhas franzidas.
Nisso chegam dois homens. O da frente começa a falar com a mulher:
-Tô vendo a discussão de vocês de lá. Ele é o que seu?
-Nunca vi. – responde a mulher.
Ele vira para mim:
-O que que você tá se metendo aí?
Não consegui escutar direito o que ela falou, mas acho que fez ele entender que falávamos da menina. Então ele me pergunta:
-Ela é o que sua?
-Precisa ser alguma coisa minha? Você acha razoável uma criança trabalhando?
-É da tua família? Ela não é nada sua, por que tu tá se metendo?
-Ué... Você não se importa com o que acontece no seu país?
-Que importar o que! – rindo – País de ladrão, só tem corrupto! – levantando a mão com desdém em direção à esplanada.
-Mas é por isso...
-Tu num tem nada que se meter! – a mulher.
-Eu só tô falando porque eu me importo.
-Vai te importar com tua família! – diz o homem, rindo.
De novo o cara atrás da caixa de isopor:
-Vai embora, tô te avisando!
-Cara, isso não é razoável... –eu digo, já sentindo que não dava mais pra conversar.
-Vai! – diz ele, entre o murmúrio indistinguível dos outros. – Vai-te pra puta que pariu!
-Cara, isso não é razoável...
-Vai se importar com tua família e deixa os outro em paz! – diz o outro.
-É por isso que esse país não muda! – eu reclamo e vou andando de volta a esperar o ônibus.
Na parada a menina ainda passa por mim e sorri. Eu correspondo forçadamente, já que ainda estava irritado com a situação. Quando ela passa de volta, vira pra trás, olhando pra mim, e se vai.
Eu fiquei pensando se ligava pro disque-denúncia ou não, já que às vezes a criança fica pior sem os pais. No ônibus eu resolvi que sim: uma mulher que põe oito filhos no mundo ser ter condições e depois entrega na mão dos outros para trabalhar não teria condições de criar a menina. Concluí que a menina ficaria melhor sem ela. A primeira coisa que faria depois de descer do ônibus seria ligar. Liguei pro disque-denúncia e me deram o número do SOS Criança.
-Bem... é, pensando bem, não quero fazer uma denúncia anônima, não. Eu quero realmente participar disso, quero fazer alguma coisa. [...] Se precisar de qualquer coisa, de mais informação pode ligar. [...] Bem, foram três unidades bem gastas.



Foi uma chatice escrever essa estória, e deve ser uma chatice ler. Não que seja totalmente desinteressante, mas é que é desgastante. Preferia que não fosse real, mas infelizmente é. Não sei se o que fiz foi certo. Não sei se faria denovo. Está aqui para análise, para provocar o pensamento. Não que eu queira respostas; eu só quero que observem algo que eu achei interessante.
Basta.